sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A burranca do Ti Manel

O Ti Manel Valverde era inseparável da sua velha burranca, a que dera o nome de Bonita.
 Já estava ao seu serviço há muitos anos e não podia passar sem ela. Levava-o para todo o lado, puxava a velha nora sempre que queria regar a horta, atrelava-lhe a carrocita quando precisava de transportar carga e até se ajeitava na canga fazendo parelha com a formosa, a bezerra que tinha comprado, por vinte e cinco notas, o ano passado, na feira de S. Miguel.

 Por causa da burra, cada vez que me cruzava com ele lembrava-me sempre do T''Jaquim Caulros, que já lá s'tá, Deus o tenha em descanso. Também se  deslocava sempre montado no seu burro. Havia entre eles uma diferença, é que o T'Jaquim era bem mais alto. Existia uma manifesta desproporção entre as suas pernas e a altura do quadrúpede. Essa circunstância obrigava-o a uma grande atenção p'ra não tocar c'as botas no chão. Constava até c'às vezes, o pobre asno, se aproveitava disso para, escolhendo passar pelas covas mais fundas do caminho,  deixar o dono apeado. Liberto da carga era vê-lo desentraitado a trote por ali fora ... , bem, mas essa é outra estória... 

Aqui há tempos, andava Ti Valverde na cava da vinha que tinha lá pr'ós lados da Alagoa, um pouco para lá da Senhora da Quebrada, como quem vai para as Quintas do Anascer, enquanto a burra se ia amanhando com as ervas do prédio do lado qu'stava de pousio, só servindo, por isso, de ervagem. Para o animal se sentir mais solto,  poder alimentar-se mais à vontade e  por um espaço mais alargado, mas também para o  Ti Manel poder trabalhar mais descansado, porque com burros nunca se sabe o que lhes pode passar p'la ideia, tinha-o prendido a uma olveira c'ma corda, com mais ou menos, vinte metros de comprimento, ali mesmo ao pé do ribeiro.

De tão compenetrado qu'stava na sua tarefa e c'o pensamento a divagar ora p'las dificuldades da  vida, lembrando-se dos estragos provocados p'la geada, que deu cabo das primeiras batatas semeadas e das favas, fora o resto..., ora cismando no futuro padrasto qu'spera os filhos, esqueceu-se, por completo, da sua jumenta. Só ao meio dia, chegada a hora do jantar, é que deu uma olhadela pl'o animal. Embora com a corda esticada pareceu-lhe que corria tudo bem com ela, não havendo motivo para preocupações. Não tinha trazido nada pr'a lhe dar por não haver necessidade disso, tal era a abundância de ervas que nesta altura do ano, havia no meio do olval.

Nem se podia falar bem de refeição, visto c'a bucha, constituída  por um naco de pão centeio acompanhado de queijo, azeitonas e um bocado de chóriça, tinha que ser rapidamente deglutida e não se podia perder muito tempo porque corpo parado arrefece e, além disso, era para si que trabalhava, o que não é bem  a mesma coisa como quando s'anda pra outro... Era tarefa que o Ti Manel não entregava a ninguém, tendo em conta o velho ditado que diz  que "a vinha escave-a (1) quem quiser, pode-a quem souber e  cave-a (1) o seu dono". Volta e meia chegava o gargalo da botelha  aos bêços pr'ajudar a engolir o pão e o conduto e para ganhar novas energias de que bem precisava. Este era do resto do tinto da última colhêta que tinha saído bem bom, pena era qu'stivesse a chegar ao fim. Arrumou na cesta as sobras que serviriam, mais logo, p'ra merenda.

Retemperadas as forças, o Sol já começava a baixar, ala que se faz tarde, voltou à tarefa com novo ânimo.  Andava nisto há uma semana e tentava a todo o custo acabar esta vinha ainda hoje, até já tinha pensado ir amanhã  pr'ós Seixéis (2), lá p'rós lados do Vale do Moreiro, lavrar uma sorte que  lhe tinha calhado da parte do sogro. Para alcançar o objectivo a que se propusera teve mesmo que acelerar o ritmo. Acabava de se por o Sol quando finalmente deu o trabalho por concluído. Foi ao pé da figueira onde tinha pendurado a cesta e a véstia.

Santo Deus, só quando se preparava pr'abalar para casa é que se deu conta da ausência da burra! Seguiu a corda, a que a tinha prendido, até ao fim e foi então que s'apercebeu que o nó se tinha desatado. Ficou desesperado, não se contendo exclamava bem alto, sem que ninguém o ouvisse e sem pensar sequer na incongruência contida nas suas palavras:
 - Rais t'a partissa burra dum filho da puta, se não apareces mato-te!

Completamente fora de si  foi até ao caminho e interpelou um homem que vinha montado num macho, que se dirigia para o Anascer, que acabou por reconhecer como sendo o Ti Antonho Saraiva.
 - Olhe lá,  ó Ti Antonho vocemecê no viu p´ráí uma burra russa sózinha, á deriva?
 - Na'senhora, olhe c'no vi nanhum animal abandonado. mas proquei, perdeu algum?
 - Enquanto andei a cavar a vinha tinhá prendido c'ma corda a uma olveira e só dei conta que se tinha soltado  quando s'tava p'ra me vir embora.

Era já de noite quando se meteu ó caminho de casa, a pé com a cesta  nma  mão e a corda na outra, calcorreando os mais de três quilómetros que o separavam da aldeia. Valeu-lhe a luz da lua cheia pra lh'alumiar o caminho. Desanimado com a sua desgraça, embora lá no fundo encarasse uma pequenina esperança d'encontrar a sua, até então, fiel companheira de trabalho, já começava a deitar contas à vida p'ra ver como arranjaria o dinheiro suficiente para comprar uma substituta. Foi sempre perguntando a toda a gente qu'encontrou p'lo caminho se tinham visto algum animal. Não, ninguém tinha visto. Grande desgraça se abateu sobre mim. Como vou conseguir explicar à mha patroa o desaparecimento da Bonita?

Ao chegar a casa já ela o sperava à soleira da porta com os olhos cheios de lágrimas temendo ter acontecido o pior ao seu Manel.
- Ai Jaquina, nem queiras saber a grande desgraça cm'assucedeu, atão não é que quando m'aprontava pr'a vir dei p'la falta da nossa Bonita!
-  Deixa lá home, o qu'interessa é que tu estejas aqui bem de saúde, graças a Deus, e olha, não t'esqueças de ires à corte por a cmida à formosa, que só cmeu umas canas secas de milho que lhe dei à hora de jantar.
 - Vê lá tu c'até  m'tinha squecido dela!
Apressou-se, como sempre, a cumprir a recomendação da mulher. Assim c'abriu a porta não conteve um grande sorriso, de orelha a orelha, a sua Bonita já s'tava à manjedoura, ao lado da formosa, abocanhando o feno c'a T'Jaquina lhes tinha posto momentos antes. Assim c'o viu entrar abaixou  as orelhas como c'arrependida d'o ter deixado sozinho no campo! C'o contentamento d'a voltar a ver o Ti Valverde nem s'astraveu a discutir muito com ela. Apenas desabafou: grande sacana isso não se faz ao dono, deixa lá c'amanhã vais amargá-las à canga mai a formosa qu'é pr'amansares !

Já mais calmo, voltou para casa onde a sua Jaquina já tinha preparado a ceia e deitado o caldo das couves na malga para ir arrefecendo.
 - Granda susto me pregaste home, nem calculas como fiquei quando vi a Bonita Chegar sozinha, há mais de três quartos de hora!

A paz regressou aquele santo lar, pouco depois de cearem foram-se deitar pensando já nos afazeres que os esperavam no dia seguinte.




(1) A cava e a descava (ou escava) são operções de natureza diferente, uma é quase o inverso da outra:  na cava remexe-se a terra aproximando-a do tronco das cepas; a descava é a operação com que se inicia o ciclo cultural e consiste na abertura de caldeiras à volta do tronco da cepa.
(2) Seixéis, o mesmo que Seixais (terreno com muitos seixos).




2 comentários:

Serrano disse...

Finalmente vem a Literatura! Bom texto!

Anónimo disse...

Ai jogilbo! O qu'eu aprendi sobre piscologia alimal!
Bem feito.
3A.B.